Roberto Curi Hallal

ROBERTO CURI HALLAL

APRESENTAÇÃO

A vida é tão bela que chega a dar medo.
Não o medo que paralisa e gela.
estátua súbita,
mas
esse medo fascinante e premente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para a frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.
Medo que ofusca: luz!
Cumplicentemente,
as folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:
Adolescente, olha! A vida é nova…
A vida é nova e anda nua
– vestida apenas com o teu desejo!

O Adolescente em Apontamentos de história sobrenatural, Poesias
Mario Quintana

Um dia destes o amor chegou gentil e silencioso a minha casa. Vestido na forma de carta, insinuou-se na caixa de correspondência, como dedicatória escrita e inesquecível. Entrou por debaixo da porta e alojou-se no colchão dos meus filhos adolescentes. Não sei bem o que lhes aconteceu ou em que lugares imaginários estiveram. O resultado de semelhante encontro foi um colchão desvirginado, marcado pela mancha do prazer solitário e insuficiente.
O amor entrou sob a forma de música repetitiva e com o volume dos obesos. Foi forma de chave na gaveta que guardou um lenço com perfume, um guardanapo que revelava um poeta improvisado e pela imaginação de futuros não acontecidos, tornando pai e mãe insuficientes, não por causas nossas, senão pela própria ilusão que se chamava naquele dia Joana, Maria ou outro qualquer nome de mulher; ou por alguma forma de buscar palco para o desejo de serem homens ou amantes. Percebi sentirem ser desnecessário confessar-me que não me necessitam mais como crianças. Fraternalmente, invadem minhas gavetas desnudando minha possibilidade de escolher cuecas e meias. Desaparecem magicamente minhas lâminas de barbear e sei serem eles quando algum corte lhes denuncia a inabilidade de quem as usa há tão pouco tempo.
Seus pijamas ficaram curtos e dobraram a porção de comida, do mesmo modo que eu a diminuo. Nos seus vocabulários ainda não se imprimem o colesterol e o ácido úrico. O telefone já não me pertence com tanta exclusividade. E o pior é que eles me injetam a vida e não me perguntam se estou preparado para o excesso de oxigênio. Não me sabem de pernas cansadas e me convidam para o futebol. Não me imaginam mais herói. Usam e abusam do meu sim e se decepcionam facilmente com o meu não.
Por que quando mais livre do que eles, me olham com estranheza? Será que não me admitem democrático? Ou só posso ter o papel do ditador? Não posso ser livre em minhas convicções, independentemente de estarem elas certas ou erradas?
Como acusá-los disso? Como atacar-lhes esta autenticidade humana e desprezar-lhes o sonho que enunciam e a que nós já renunciamos.
Eles são permanentemente paixão e (pré)conceito. Amor e conceito. Violentos e secos, duros como poucos. Quase nunca pensam em mim, em minhas necessidades e desejos. Eu, lutando contra esta culpa atávica e constante que nenhuma análise dá jeito, devedor duma conta paga em dia, desconcertado, me cobro num paternalismo e me engano quando tenho que ser lei. Desconhecem meu temor em dizer não.
Meus filhos não me pensam defensor da adolescência. Por havê-la tido fui ingênuo, transparente e sincero demais para uma estrutura social organizada em torno da acomodação do “não é comigo nem com os meus”, os doentes “são os filhos dos outros”. Para senti-los, homem ou mulher, tenho que, no mínimo, restaurar em mim a paixão, a solidariedade e a capacidade de espanto. Preço caro e sincero para conviver com isto que lhes constitui a essência.
Acredito na história vivenciada e no amor como condição que predispõe ao entendimento. Então, àqueles que como filhos não os tiveram como modelo aceitável, que permitam pelo menos aos seus filhos a construção destes com a propriedade e a diferenciação que cada geração necessariamente tem em relação a antecedente.
Das guerras aprendemos que os armistícios constituíram as histórias dos indivíduos. Não foram as guerras, como equivocadamente se pensa, propulsoras do progresso. Elas só mataram os jovens. Nos armistícios encontram-se formulas para convívio com as diferenças. O que leva nossos filhos as guerras formais ou informais, ao convívio com a droga, com a prostituição, com a ociosidade, é decorrente de uma proposta bélica entre os próprios grupos sociais nos quais ou entre os quais eles vivem.
Minha coleção de figurinhas já rasgou, a estampa do Eucalol não tem mais cheiro, os guardanapos com poemas para amores não acontecidos estão sem perfume e em branco. Só os sustenta minha fértil memória e resisto enquanto houver alma. Ai de mim se me esqueço. Ai de todos nós se nos perpetuamos sem história, essência do humano, alimentadora de memórias. Não posso negar àquele que olhava o mundo com medo e arrogância. Também não posso negar o tempo perdido com uma escola formal e inútil que exercia regras úteis para delinqüentes e com excesso de disciplina e deveres para quem já os trazia de casa. E, por isso, não posso esquecer que a força do arbítrio, da intolerância ainda estão presentes. E cumpre alertá-los disso. Como se filho educado pudesse acreditar na contradição entre desejo e drama familiar. Um enuncia o sujeito, o outro cerceia. Penso como Huxley que a experiência não é aquilo que nos aconteceu, senão o que faremos disso.
Freqüentemente os filhos se parecem conosco. Assim, nos satisfazem, mas depois só nos ensinam as diferenças. Mais além de homem-mulher, livres-libertinos, pai-mãe, eles se impõem como sujeitos. Não como os esperamos, mas como podem ser. Não dosam suas satisfações, mais aproveitam em cinco anos o que preciso distribuir em quarenta e cinco. São transparentes onde me escondo; incautos denunciadores do que penso, mas não digo. Mandam ao inferno a escola burra, o governo quando corrupto e evitam os chatos. Inconscientes, denunciam meus ideais e acabam atores das minhas desatualizadas esperanças.
A vida passa depressa. A memória é como sombra, a nos acompanhar todo o tempo; nos pertence, nos organiza e só a percebemos quando falta. Como um desmemoriado tento dizer-lhes algo com a limitação humana de um afásico.
De qual família esperam relatos e revelações? Duas famílias me constituem, superpostas em tempo presente. Numa, fui filho, noutra, sou pai. Porém, outras duas não menos importantes entram a constituir parte daquelas: a da conferência e a da vergonha. Como fui educado para esconder a segunda, perco um pedaço de mim e não consigo falar da primeira. Por opção ou pela redundância, evito estender-me em obviedades de adormecer platéias. Quisera fazê-los alegres e seguros, reafirmar-lhes certezas comuns e partilhar nossos medos. Deixarei esta troca para um momento mais privado. Aproveito este lugar para propor-lhes pensar que a questão dos adolescentes não se restringe às famílias. Durante alguns anos acreditei no abandono filicida dos pais dos meninos e meninas de rua. Se meu salário fosse de quarenta dólares mensais filicida seria se não os fizesse compartilhar da luta pela sobrevivência; lhes ensinaria a rechaçar o paternalismo da esmola e faria de suas caixas de engraxate e de suas gomas de mascar quentes de sol, cartilhas para educar aqueles que os marginalizam por negligência social ou ganância de lucros.
Famílias, ideais articulados e reais encenados. Quantas numa só. A que comemora bodas de prata e ouro, a que evita a morte e o recém-nascido. Como corpo diplomático ou corpo de bombeiros, uma administrando as discórdias, outra apagando o fogo das paixões. Uma com plano e expectativas, outra com histórias silenciadas.
O final pode ser diferente, mas o roteiro é o mesmo. Quando está presente o adolescente, sabe-se que ele é o “mordomo”. Dorme tarde, acorda tarde, não estuda, não obedece, não diz sim, se nega a aceitar o que lhe é imposto.
Nós, responsáveis pelo governo da família, honestos, lhes oferecemos uma escola rica e útil; os disciplinamos para a obediência civil. Gratos, felizes e históricos, cuidamos de nossos velhos, tombamos nossa história e lhes exigimos o que não cumprimos.
Como um grupo humano e coerente, nós os culpabilizamos por uma tristeza que não reconhecemos nossa, e a atribuímos às suas condutas, esquecendo-nos da celulite da alma e do distúrbio de conduta do coração. Entre plásticas e taquicardias, lhes oferecemos um modelo tóxico como resolução imediatista para nossa aflição, que nos faz esquecer das cartas de amor. Também precisamos mostrar-lhes o que somos, incompletos e insatisfeitos como humanos, mas prontos a aceitar a humildade do limite, contando-lhes nossas duvidas.
Que nos saibam solidários na dura luta de viver, cada um na sua e ambos na mesma. Famílias antropológicas, sociais, psicanalíticas, teatrais, românticas, perversas, modelares, exemplares e sagradas. Cardápio de varias opções. Que cada um faça sua escolha. E estaremos todos preparados para escutá-los e entendê-los? Este o nosso desafio maior: recebê-los em sua dimensão.

Conferência Inaugural do III Congresso Brasileiro de Adolescência em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, setembro de 1989.